Alguns argumentam que a linguagem neutra torna o português mais inclusive, enquanto outres acham que elu só complica o que já era difícil para a maioria de todes os brasileires.

É provável que boa parte das pessoas leu esse trecho com certo estranhamento e, em seguida, manifestou algum tipo de aversão — ou percorreu as palavras com uma apreciação entusiasmada, demonstrando aprovação. Isso porque, no Brasil, até as palavras têm partido. Mas há ainda aqueles que optaram por um olhar mais técnico e científico para analisar esse fenômeno.

Como na língua e na política nada acontece por acaso, a proibição da linguagem neutra sancionada pelo presidente Lula foi vista como um aceno a setores mais conservadores da sociedade.

Você já deve imaginar o porquê, né? O uso de “todes” (em vez de “todos”) ou “elu” (em vez de “ela” ou “ele”), por exemplo, é fortemente associado ao ativismo LGBTQIA+ e a discursos progressistas de inclusão de pessoas não-binárias. Ao vetar o uso desses termos em documentos públicos, Lula pode ter sinalizado respeito — ou cedido — a valores linguísticos “tradicionais” valorizados pelo público conservador.

O governo apresentou a vedação como parte da Política Nacional de Linguagem Simples, argumentando que isso tornará a comunicação oficial mais clara e acessível para todos os cidadãos. Embora a medida pareça se encaixar numa estratégia de moderação para evitar desgaste com a ala mais conservadora do Congresso, para alguns ─ como eu ─ essa justificativa ganha sentido técnico: documentos oficiais devem ser claros, de fácil compreensão.

Para que qualquer texto seja compreensível por mais pessoas, inclusive aquelas com menos educação formal ou que não estão acostumadas aos jargões burocráticos, a norma-padrão pode funcionar como um código comum, especialmente em um país de dimensões continentais como o Brasil, onde convivem dezenas de variantes linguísticas, socioletos e registros.

Além disso, não podemos encarar o veto presidencial apenas como um retrocesso ideológico. O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu contra leis municipais que impediam a linguagem neutra em escolas. Isso mostra que há um limite legal para proibições desse tipo.

A proposta de “neutralidade” na língua portuguesa não é de hoje e traz consigo entraves linguísticos. O primeiro talvez seja a tentativa de incluir “pronomes e substantivos neutros”. 

A ideia de criar um “gênero neutro” para se referir a coletivos não faz muito sentido do ponto de vista estrutural, uma vez que o português já possui pronomes neutros.

Encontramos, por exemplo, iss[o], ist[o] e aquil[o] — todos pronomes neutros, ainda que terminem com a letra “o”. Nesse caso (e em outros semelhantes), o “o” não indica desinência de gênero, pois não há marca específica para o masculino em português. É isso mesmo o que você leu: o “o” não necessariamente indica o masculino nas palavras.

  • ser menino ou menina

A ideia de que a letra “o” representa o masculino e a letra “a”, o feminino, pode parecer evidente para quem desconhece a estrutura e a história da língua, mas trata-se de um equívoco linguístico. Se nos aprofundarmos um pouco mais na filosofia da linguagem, veremos que masculino e feminino (na língua) são conceitos que se relacionam com o gênero da palavra, e não necessariamente com o gênero biopsicossocial. A língua, portanto, possui marcas genéricas que indicam o gênero da palavra, não do referente.

  • do latim à complexidade do português

Para compreender o funcionamento do gênero na língua, é preciso voltar a sua formação histórica. O português é o resultado da evolução orgânica do latim vulgar, trazido por soldados romanos do Lácio, na Itália, no século III a.C. Essa origem inspirou Olavo Bilac, poeta parnasiano, a chamar o português de “a última flor do Lácio, inculta e bela”.

Ao longo dos séculos, a língua também foi influenciada por outros idiomas e traz um substrato céltico. Após a queda do Império Romano e as invasões germânicas, formou-se o galego-português, dialeto que se diferenciou das demais línguas ibéricas. O português moderno é, portanto, o resultado de acúmulos e transformações linguísticas — uma estrutura complexa e consolidada.

Modificar tal estrutura exigiria que gramáticos de toda a comunidade lusófona observassem o uso corrente da língua, isto é, o que já está consagrado entre os falantes. Só então, com base em deduções e observações, poderiam propor novas normas. (O último Acordo Ortográfico, de 2009, foi proposto em 1986 — um intervalo de mais de 20 anos até ser implementado.)

  • elas é que são privilegiadas

Em termos práticos, podemos observar a neutralidade em alguns substantivos. A palavra “aluno” é um substantivo biforme desinencial: ou seja, precisa de uma desinência (um “pedacinho” da palavra) para marcar o gênero — formando alun[o] e alun[a]. 

Note que o “o” não é uma desinência de gênero. Logo, a forma “aluno” é neutra do ponto de vista morfológico. A verdadeira marcação de gênero é o “a”, que indica o feminino. Percebe-se, então, que as únicas desinências de gênero possíveis são as femininas, já que não existe desinência de masculino em português.

O livro Linguagem Neutra de Gênero, de Pablo Jamilk, oferece uma visão sobre os impasses do tema sem cair nas armadilhas do simplismo. Na obra, entendemos como os pronomes neutros se mantêm como uma variante na língua e, a depender do contexto, podem ser uma boa alternativa para determinada intenção comunicativa.

  • ‘ilu’ em vez de ‘ele’?

A terminação “e” não indica necessariamente neutralidade. O pronome “ele” é formalmente masculino, mas funciona como forma neutra em muitos contextos.

Assim, propor que o “e” de “amigue” sirva como marca neutra carece de fundamento linguístico e não tem aplicabilidade normativa — ainda que possa aparecer em discursos publicitários ou militantes, nos quais o efeito desejado é mais ideológico do que gramatical.

Na língua portuguesa, o masculino gramatical tem função abrangente: é usado para designar grupos compostos por indivíduos de ambos os gêneros. É por isso que o quantificador “todos” pode incluir homens e mulheres. Sob esse prisma, a expressão “todos e todas” é redundante do ponto de vista estritamente gramatical.

  • a norma-padrão como código comum

Em meio a essa complexidade, é preciso reconhecer o papel da norma-padrão como instrumento que garante uma linguagem comum para todos. Em um país com dimensões continentais como o Brasil, convivem dezenas de variantes regionais, socioletos, registros situacionais e influências culturais distintas.

A norma-padrão não deve existir para impor um “correto”, mas para garantir que, apesar das diferenças, haja um código comum capaz de sustentar a circulação de informações em larga escala — na imprensa, no ensino, na administração pública, no meio jurídico e em qualquer instância que exija compreensão ampla e mútua.

A ausência de um padrão compartilhado fragmentaria a comunicação nacional, criando barreiras entre grupos sociais e regiões. A norma-padrão, portanto, funciona como eixo unificador, não como inimiga da diversidade linguística. Ela convive com as variantes locais e populares, mas oferece um ponto de interseção que permite que brasileiros de contextos muito distintos se compreendam.

  • desafios para a acessibilidade

Outro ponto frequentemente ignorado no debate sobre neutralidade é o impacto da proposta na comunicação com pessoas com deficiência, especialmente pessoas surdas, pessoas com dificuldades de fala e indivíduos com dificuldades de leitura ou processamento linguístico. 

Muitos desses indivíduos dependem de estruturas gramaticais estáveis para compreender adequadamente, seja no português escrito, seja na Língua Brasileira de Sinais (Libras), que possui lógica morfossintática própria, distinta do português.

A introdução de grafias como “amigx”, “amigue” ou “amig@” cria obstáculos reais à legibilidade, à leitura assistida, à vocalização por softwares e ao ensino da escrita para pessoas com deficiência cognitiva ou sensorial. Em softwares de leitura de tela, símbolos como @, x ou combinações não padronizadas podem tornar o texto ilegível. 

Até mesmo formas supostamente “facilitadas”, como o “e” neutro, alteram a previsibilidade fonética e morfológica do idioma, dificultando a alfabetização e o reconhecimento automático de palavras.

Em vez de promover inclusão, o excesso de marcas artificiais pode ampliar desigualdades comunicativas, excluindo justamente aqueles que dependem da estabilidade estrutural da língua para se comunicar com autonomia.

Discutir neutralidade de gênero na língua portuguesa exige mais do que slogans ou boas intenções: requer compreender a língua como um organismo histórico, estruturado e complexo que não responde a intervenções imediatistas.

A gramática não é inimiga da inclusão; ao contrário, é o que permite que pessoas de diferentes regiões, níveis de escolaridade e realidades socioculturais partilhem um mesmo código de comunicação. Em um país de tamanha diversidade linguística quanto o Brasil, qualquer mudança normativa precisa considerar o impacto sobre esse delicado equilíbrio.

  • tempo, tempo, mano velho

A incorporação de novas palavras ao português é um processo aparentemente simples, mas profundamente gradual, condicionado a fatores socioculturais, demográficos e históricos. Uma palavra nova só se estabiliza quando passa a circular espontaneamente entre os falantes, atravessando diferentes contextos de uso, registros e grupos sociais. 

Em geral, isso exige tempo — às vezes décadas — para que a comunidade linguística valide a utilidade do termo, avalie sua sonoridade, sua compatibilidade morfológica e até sua necessidade real. Ainda que um neologismo nasça com grande apelo, ele só se fixará se encontrar aderência no uso cotidiano, o que é observado empiricamente por críticos, gramáticos e lexicógrafos antes de ser incorporado aos dicionários ou à norma-padrão.

No caso do português, que é uma língua pluricêntrica e regulada por acordos internacionais, a estabilização de vocábulos precisa também atender a outro critério: o da circulação entre os países lusófonos. Um termo pode surgir em um deles e não ganhar força nos demais, ou pode ser rejeitado por falta de clareza, tradição ou utilidade comunicativa.

Por isso, propor a adoção de novos vocábulos “neutros” não é apenas uma questão de vontade política ou de militância linguística; é propor uma mudança que depende da aceitação natural e majoritária dos falantes.

A língua muda não por decreto, e sim porque as pessoas, ao longo do tempo, passam a usar uma forma de maneira tão consistente que ela se torna parte do sistema.

Para ilustrar esse ritmo lento, basta lembrar o processo do último Acordo Ortográfico. Assinado em 16 de dezembro de 1990, ele deveria entrar em vigor em 1994, mas dependia da ratificação de todos os países signatários. Como isso não ocorreu, foi firmado um 1º Protocolo Modificativo em 1998, adiando sua implementação. 

Em 2004, um 2º Protocolo permitiu que o Acordo passasse a valer com a ratificação de apenas três países — e Portugal só ratificou esse protocolo em 2008. No Brasil, o Acordo entrou oficialmente em vigor em 1º de janeiro de 2009, e o período de transição terminou no fim de 2015.

Segundo Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), foram necessários quase 25 anos desde a assinatura até a implantação efetiva. Ou seja: mudanças linguísticas, mesmo quando apoiadas por governos e instituições, levam décadas para se consolidar.

  • a língua como ato ideológico

Sob uma perspectiva discursiva, porém, optar por explicitar o masculino e o feminino é um ato de intervenção e uma manifestação ideológica. Nesse nível, a língua ultrapassa o campo da comunicação e se torna um instrumento político e social, capaz de refletir valores, crenças e disputas simbólicas. A língua, afinal, é viva, autônoma e arbitrária — e o que se diz, como se diz e por que se diz são escolhas que revelam muito mais do que a gramática pode prever. Mas esse papo fica para outra crônica.