Traições. Quem nunca se pegou imaginando o que aconteceria se, de repente, o desejo que sentimos fosse o mesmo que o outro sente por alguém — ou até por nós? Lacan, psicanalista francês que reestruturou a psicanálise, já dizia que o desejo não nasce sozinho, e, se ele estava certo, talvez todos nós sejamos cúmplices involuntários de nossos próprios ciúmes.

Ao retomarmos a maior polêmica literária do Brasil, brindamos à típica hesitação machadiana: Capitu traiu Bentinho? Machado de Assis provavelmente não se importaria com qualquer resposta direta. Ele estava mais interessado em nos observar tropeçando nas sombras da ambiguidade, deixando-nos encucados, preenchendo, por conta própria, as lacunas que ele tão habilidosamente deixou espalhadas pelo romance.

Suspeito que Machado insinuou, com ironia, que a nossa percepção da realidade é moldada por nossas próprias experiências e valores. Isso diz muito sobre nossas suspeitas, não é mesmo? Mas talvez a verdadeira pergunta não seja se Capitu traiu, e sim se nós, leitores, conseguimos separar nossas emoções e inseguranças da história que lemos. Se a dúvida não nos incomodasse tanto, sejamos honestos, não estaríamos aqui escrevendo listas mentais de suspeitas.

Mesmo carregando a frustração de nunca ter se tornado o “Shakespeare dos trópicos” (após receber uma carta de um amigo comentando que suas peças não eram tão notórias quanto alguns de seus outros escritos), Machado alcançou celebridade ao se tornar o bardo do romance brasileiro. Dá para imaginar a cena: ele lendo a carta, talvez franzindo a testa, talvez sorrindo com ironia, e pensando que nem todo talento precisa de aplausos ruidosos; alguns se medem pelo abismo silencioso que provocam no leitor.

Machado nos desafia com intertextualidade e faz o leitor se contorcer em dúvidas: Maria Capitolina traiu ou não Bento Santiago? Otelo, de Shakespeare, aparece nos recantos de Dom Casmurro. O ciúme, a suspeita, a sedução — tudo se reflete como um espelho distorcido, e Bentinho nos guia por ele, meio carrancudo, meio mimado, humano, demasiadamente humano.



Entendo que você não tenha obrigação de saber o que é intertextualidade. Então, vamos simplificar sem trauma de aula de literatura: a linguista Julia Kristeva definiu o termo como a influência de um texto sobre outro — quando um autor pega emprestada uma história, uma ideia ou até uma emoção estética e a recria sob nova luz da materialidade textual. É como se cada obra literária fosse uma conversa infinita entre escritores de diferentes tempos, um eco que atravessa páginas e séculos. No caso de Dom Casmurro, esse diálogo acontece com Otelo, de Shakespeare.

Bento Santiago, protagonista e narrador da história, nos conta que “o meu fim evidente era atar as duas pontas da vida”, ou seja, juntar juventude e velhice por meio de sua própria perspectiva. E, assim como o título sugere, Bentinho não é exatamente o mais simpático do pedaço: sorumbático, introvertido e, claro, parcial e nada confiável. Alguns ainda vão mais longe e veem nele traços de um verdadeiro calhorda.

Machado chega a mencionar Shakespeare três vezes no romance. Em um dos capítulos, Bento Santiago adentra o teatro onde Otelo está sendo encenado. Resumo da ópera: Otelo, escrito no início do século XVII, apresenta um protagonista induzido por Iago — figura sorrateira e ardilosa — a matar Desdêmona, sua esposa. Otelo acaba acreditando que ela o traiu e a mata; só depois descobre que era inocente. Em Dom Casmurro, Bentinho cogita tirar a vida de Capitu e a do filho, ainda criança.

O capítulo 62, intitulado “Uma ponta de Iago”, funciona como referência explícita a Otelo. Iago instiga o ciúme e leva Otelo a assassinar Desdêmona. No paralelo, José Dias encarna o papel de Iago; Bentinho, o de Otelo; Capitu, o de Desdêmona, como vítima. E nós, pobres leitores, somos o público privilegiado que sabe demais e, ainda assim, duvida de tudo.

Machado brinca com a nossa percepção e constrói uma imagem subvertida de Capitu. Com “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, ela parece mais mulher do que menina e, ainda assim, mantém um toque de inocência capaz de confundir até o narrador mais atento. Como não se perder nesse jogo? Como não se perguntar se todos os desejos que projetamos nos outros são, na verdade, apenas sombras dos nossos próprios medos?

A intenção é levar o leitor a formar uma imagem falsa de Capitu, derrubando a reputação da personagem — como Iago fez com Desdêmona nas mãos de Otelo. Machado induz, estrategicamente, o leitor a acreditar que a menina cujos “olhos o diabo deu” seduziu Bentinho.

Até o nome do protagonista carrega pistas: Bento Santiago. Bento, sacrossanto; Santiago, Sant’Iago. Machado não deixa nada ao acaso. Cada detalhe é uma pista para decifrar o enigma.

Ler Dom Casmurro é aceitar que a dúvida faz parte da experiência literária, que a “pena da galhofa” de Machado nos conduz com leveza e ironia. 

E, no fim das contas, talvez a grande lição seja compreender que, mais importante do que saber se Capitu traiu Bentinho, é perceber que, no amor e na literatura, a pergunta pode revelar mais sobre nós mesmos do que a resposta.