Entre tantas questões que surgem à mente — geralmente às três da manhã, quando o sono decide me boicotar —, talvez a mais persistente seja: o amor floresce no íntimo do cotidiano ou precisa extrapolar o comum para alcançar a condição de extraordinário?

O som improvisado do clarinete de Sidney Bechet parece guiar a cidade para uma cena em preto e branco, em que sobrevive o amor contemporâneo — esse amor que Woody Allen filmaria entre cafés, neuroses, tédio e olhares trocados por acaso. Um amor que não se declara com fogos de artifício, mas com silêncios constrangedores e muitas perguntas silenciadas.

Alvy Singer (Woody Allen) é um humorista judeu, divorciado, em análise há quinze anos, que se apaixona por Annie Hall (Diane Keaton), uma cantora enigmática e deliciosamente confusa. Ambos vivem em uma Nova York feita de sarcasmo, jazz e amores que brotam no absurdo do cotidiano para depois se dissolverem na rotina — como açúcar num café que já esfriou.

Se não fosse a sinopse de Annie Hall (Noivo Neurótico, Noiva Nervosa), de 1977, dirigido pelo próprio Woody, o enredo desse clássico poderia ser o roteiro da vida de qualquer um de nós. Afinal, quem nunca viveu um relacionamento banal disfarçado de grande história de amor? Quem nunca acreditou que o caos emocional tinha um quê de charme cinematográfico?

Pouco depois de se conhecerem, Alvy e Annie decidem morar juntos. É claro que as crises não demoram a aparecer — o amor, afinal, não é um contrato de estabilidade, mas pode se tornar uma sucessão de equívocos bem-intencionados. Woody Allen nos mostra isso numa mistura de humor cáustico e melancólico, onde cada neurose é quase uma forma de carinho.

Annie Hall, ganhador de quatro Oscars, revela que o amor pode florescer em algo tão simples quanto uma partida de tênis. Mas nós — eternos espectadores de nós mesmos — insistimos em buscá-lo em experiências transcendentes, em epifanias divinas dignas de trilha sonora francesa. E esquecemos que, às vezes, o extraordinário se disfarça de banalidade. Aquele amor que nasce da idealização exasperada das comédias românticas talvez só exista mesmo como um roteiro.

Em algum ponto das nossas vidas, percebemos que os relacionamentos ganham contornos de filmes de Woody Allen: roteiros sem garantias de finais felizes, onde as falas mais sinceras são ditas em tom de piada. É nesse cenário que Diane Keaton, que nos deixou recentemente, nos encanta com seu talento raro e sua leveza excêntrica — gravatas, chapéus e aquele sorriso que parecia rir da própria vulnerabilidade.

Dentro e fora das telas, Diane foi uma mulher que transformava o caos em beleza. E, ao ver em Woody um par perfeito, fez o improvável acontecer: eles se apaixonaram na vida real. Um amor que parecia roteirizado, mas que desafiava o próprio roteiro — como uma tentativa frustrada de afastar a ideia de que o amor costuma brotar em simples situações do cotidiano. A estrela de Hollywood e o diretor consagrado pela crítica especializada viveram um romance. O público confundia o que era ficção, e talvez eles também.

Ainda que Annie passe a questionar o papel de Alvy na sua vida e sucessivas quebras de expectativas tomem conta do relacionamento, o amor existiu enquanto durou — e talvez isso seja tudo o que importa. 

Eles se despedem quando já não há mais espaço entre dois corações que aprenderam tudo, menos permanecer. E, no fundo, a gente entende: o amor não é a metade que nos completa, é a presença que nos provoca. Afinal, quem aceitaria ser metade de uma laranja quando o suco já perdeu o sabor?